Estamos assistindo ao ocaso do deslumbramento com soluções tecnológicas generalizadas, como se fossem a salvação – neste caso muito precisamente – da lavoura. Os excessos de “quimização” estão levando à esterilização de solos, o uso generalizado de pesticidas gera o deslocamento do problema ao surgirem doenças resistentes, a injeção indiscriminada de antibióticos para melhorar o ritmo de engorda de gado leva à transferência dos problemas para os humanos. O próprio uso de organismos geneticamente modificados está sendo reavaliado.
O problema essencial, entretanto, não está nas tecnologias, e sim na sua aplicação descontrolada e divorciada de uma visão sistêmica das políticas agrícolas. Não está sequer na questão do volume de produção, pois, com 2 bilhões de toneladas de grãos produzidos anualmente no planeta, estamos produzindo quase um quilo por dia e por habitante só desse tipo de alimento. No entanto, temos mais de 800 milhões de pessoas passando fome no planeta, morrem anualmente 10 milhões de crianças essencialmente por desnutrição e doenças conexas, grandes investidores institucionais adquirem gigantescas extensões de terra que não cultivam nem deixam ser cultivadas. Os grãos tornam-se objeto de mecanismos especulativos, com saltos de preços que desorganizam os produtores e geram catástrofes alimentares nos países importadores.
É preciso lembrar a importância global das atividades agrícolas. Hoje 50% da população mundial ainda é rural. Um terço da população ainda cozinha com lenha. Costuma-se citar a cifra de 2,5% da população ativa rural nos Estados Unidos, como se isso implicasse uma perda de importância desse setor. Tratamos como “serviços”, como se fossem de outro setor, atividades de inseminação artificial, análise de solo, sistemas de estocagem, redes de comercialização e transporte, etc., quando se trata na realidade de um eixo central no conjunto das nossas atividades econômicas. Hoje, inclusive, já não se fala apenas da alimentação, mas dos chamados quatro “efes” (em inglês, food, feed, fuel, fibre – alimento, ração animal, combustível, fibras), aos quais se acrescentam mais recentemente os usos medicinais, ornamentais e outros.
Essa nova complexidade nos leva à noção da multifuncionalidade da agricultura, e a uma compreensão mais ampla dos desafios. A agricultura não é apenas uma combinação de fatores de produção – solo, água, semente, adubos, controle de doenças –, é um modo de vida da população, um tipo de articulação cidade/campo, uma cultura no sentido mais amplo. Quando se expande a monocultura de exportação numa região, pode-se até aumentar o PIB local, mas quem irá sustentar nos bairros pobres uma população expulsa da área rural? A troca compensa? Temos de evoluir para uma visão mais ampla, de produtividade sistêmica do território, e de otimização de uso dos recursos no longo prazo.
Em torno das atividades propriamente produtivas, formaram-se gigantes corporativos de insumos agrícolas, por um lado, e de comercialização, por outro – os famosos atravessadores que cobram pedágio sobre a produção e dificultam a sua expansão. Munidos de advogados, patentes e redes de intermediários, essas corporações reduzem drasticamente a autonomia dos produtores, o seu leque de opções.
Pode-se falar hoje em agricultura, ou será melhor usar o plural? Não à toa no Brasil temos um Ministério da Agricultura que cuida das grandes empresas produtoras de soja, de cana e semelhantes – o chamado “circuito superior” –, enquanto o Ministério de Desenvolvimento Agrário trata da massa de agricultores, os pequenos e médios que produzem 60% dos nossos alimentos.